28.2.06

Gata escaldada


Do elevador, ouviu o telefone tocando em seu apartamento. Apressada, saltou no décimo sexto andar carregada de sacolas do Carrefour. Jogou as compras no chão e começou a procurar as chaves de casa. Bolsa grande é bom para carregar muitas coisas, mas, na hora de achar algo rapidamente, é um empecilho. Arrancou as chaves de dentro da bolsa, quebrou uma unha e tentou abrir a porta. Chave errada. Por que mantinha as chaves da casa da mãe no mesmo chaveiro das chaves do seu apartamento ainda não sabia. Vontade de não amadurecer, talvez. Por sorte, pegou a chave certa na segunda tentativa. Destrancou a porta, deixou o gato fugir sobre as compras e pelo corredor e, quase sem fôlego, disse: “alô”.

Era a terceira vez que ele ligava aquela semana. Tinha dado seu telefone a ele ao encontrá-lo casualmente no Café Teatro depois de anos sem se verem. Se conheceram durante uma viagem de ônibus a São Paulo financiada pela universidade. Quatorze horas de viagem, muito papo e bastante afinidade. Na Praça da Sé, acabaram se separando, pois ela iria para um albergue em Bela Vista e ele para a casa da namorada em Pinheiros.

“Não, hoje eu não posso sair”. Tinha que ir ao aniversário da prima do namorado da amiga dos tempos da faculdade e, se não fosse, seria vítima de um amigocídio. “Quem sabe no show lá no Bedrock’s sábado?” Não, ele tinha que encontra-la logo. Conversaram sobre outros assuntos: o novo filme que estreou no Cine Ritz, os camelôs e o Mercado Aberto, fim de relacionamentos - ele terminou um de cinco anos há seis meses e ela mal começou um no mês passado e já terminou no mês passado mesmo. Ele elogiou seus cabelos e seu sorriso, ela disse que precisava lavar a cabeça e então lembrou do gato e das compras vagando pelos corredores do prédio. Começou a ficar ansiosa, pois, se o gato fosse arranhar a porta do 1504 novamente, a velhinha do 1504 iria ficar uma fera. Ele continuava falando, mas ela não estava prestando muita atenção. Percebendo que começava a monologar, ele se despediu dizendo: “Então amanhã eu passo na porta do seu prédio às 7:40 para te levar ao escritório, tá?”. Ela concordou mandando um beijo, desligou o telefone e desceu as escadas correndo atrás do gato. Catou o bichano cheirando o focinho molhado do poodle por debaixo da porta do 1504.

Só então se lembrou que havia concordado que ele a levaria para o trabalho no outro dia cedo. Desesperou-se. Logo de manhã ele queria se encontrar com ela?! E ainda por cima às 7:40 da madrugada, quando acaba de acordar e se encontra no período mais descabelado e mal-humorado do dia! Além disso, não estava pronta para um novo relacionamento, não merecia um novo relacionamento, ele não merecia relacionar-se com ela. E se não gostasse dele e depois tivesse que lhe dar um bilhete azul amoroso? Não estava pronta para magoá-lo. E se ele não gostasse dela? Afinal, ele iria conhecê-la pela manhã, quando estaria sonolenta e vulnerável. Ele ira conhece-la realmente: mal-humorada, ranzinza, irascível! Não estava pronta para ser magoada por ele. O coração estava convalescendo, precisava de descanso para cicatrizar feridas tão recentes. Subiu as escadas decidida a cancelar o compromisso. Chutou as compras para dentro do apartamento, jogou o gato no sofá e pegou o telefone.

“Alô, Adriana?”. Explicou-lhe seu dilema por quarenta e cinco minutos e foi convencida a se dar esta chance, pois estava agindo na defensiva e, se não desse certo, “ces’t la vie”. Ela não se machucaria tanto quanto da outra vez e, se ele se magoasse, problema dele: ela mal o conhecia. Decidiu não sair naquela noite porque não estava preparada psicologicamente para ir à festa de aniversário da prima do namorado da amiga dos tempos da faculdade. Assegurou-se com Adriana que não seria vítima de um amigocídio, pediu desculpas quinze vezes e desligou o telefone.

Sentada no sofá da sala, pensando no que fazer começou a roer as unhas. Ainda roendo as unhas, começou a folhear uma revista de beleza cuja assinatura tinha ganhado da avó no último aniversário. Presente estranho. Nunca fora uma garota que freqüentasse salão de beleza ou que ficasse o dia inteiro passando creme na cara. Só fazia as unhas quando era convidada para ser madrinha de casamento ou quando tinha uma festa legal para ir. Talvez sua avó quisesse lhe dizer algo com isso.

Pulou do sofá e resolveu se preparar para o dia seguinte comendo algo leve no jantar e tendo uma boa noite de sono. Após o jantar leve e antes de dormir, ligou o computador e começou a ver alguns e-mails – a maioria spams de como aumentar o tamanho do pênis. Logo ela que nunca teve um pênis e não via um desses a mais de um mês. Ainda pensando em pênis e suas variações, olhou casualmente a revista aberta em cima do sofá. “Como ficar bonita para seu primeiro encontro”. Ela nunca acreditou nos conselhos sexistas dessas revistas femininas feita por homens para mulheres. Se bem que aquela máscara de pepino parecia ser realmente refrescante para a pele. Minutos depois estava em frente ao computador com máscara de pepino em seu rosto, o cabelo enrolado na toalha besuntado de creme e lixando o que lhe restava das unhas das mãos. “Maldita mania de roer as unhas”, semana que vem ela pararia com aquilo. Apagou e-mails, limpou a lixeira, abriu outra conta de e-mails, apagou mais alguns como “aumentar o seu pênis” e limpou a outra lixeira. Leu todos os blogs de seus amigos e mais alguns que nunca tinha visto antes. Cansada de ficar diante do computador, se descobriu com insônia.

Desligou o PC e foi fuçar na geladeira. Nada leve que pudesse ser atraente, apenas aquela calórica lasanha de frango que não parava de olhar para ela. Microondas, garfo e faca, queimou a língua na lasanha quente. Terminou de comer e foi tomar um banho para tirar aquele pepino nojento da cara. Banho tomado, ficou nua no banheiro enfumaçado a enrolar o cabelo em cachinhos e os prender com grampos. Vestiu a camiseta da Mafalda e se sentou diante da TV tentando encontrar o sono perdido. Entediada, começou a passar a máscara de pepino que ainda dava sopa na sala. Dormiu com a televisão ligada e a cara melecada.

Algum tempo mais tarde, acordou com o interfone tocando na cozinha. Saiu correndo, escorregando por causa das meias e tropeçou no gato esparramado no tapete do corredor. “Quem está me esperando aí em baixo?” Ao ouvir a resposta acordou por completo. Então se lembrou que esquecera de colocar o relógio para despertar. Desesperada, correu ao banheiro para tirar a meleca de pepino da cara e desfazer os cachinhos do cabelo. Escovou os dentes ao mesmo tempo em que arrancou os grampos da cabeça. Deu comida para o gato, vestiu uma calça, calçou um tênis e continuou com a camiseta amarrotada da Mafalda. Entrou no carro do gajo e tentou esboçar um sorriso para disfarçar o mal-humor que estava tão evidente quanto o seu cabelo despenteado. Da casa dela até o escritório, eles não conversaram muito. Lá, se despediram com uma frio beijoca no rosto.

Desde então, nunca mais se viram e nem se falaram por telefone. “Que se foda!” não estava preparada para um novo relacionamento mesmo.

8 comentários:

Anônimo disse...

eu já li isso antes??? tenho a impressão que sim...

Anônimo disse...

sim, eu já publiquei no meu antigo blog.

Anônimo disse...

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ler todo o blog, muito bom